Blog da Laura Peruchi – Tudo sobre Nova York
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A senhorinha, o homem dos pés descalços, os franceses: meus vizinhos em Nova York

Na semana passada, escrevi um texto sobre o anonimato em Nova York e comentei a respeito do outro lado sobre essa história de ninguém te conhecer aqui. De como perdemos nossas referências, de como não somos mais quem éramos. Curiosamente, na mesma semana, um fato interessante aconteceu – e esse fato me  fez  pensar sobre os meus vizinhos e sobre o que sei sobre eles.

Vejam bem, eu moro em um prédio antigo de Nova York, conhecido como prewar, ou seja, um prédio que foi construído entre 1900-1939. Não temos elevador, mas temos muito espaço. Não temos mais uma empresa grande administrando o prédio, como acontecia onde morávamos antes – e, por mais incrível que pareça, temos mais atenção aqui do que lá. Nunca me esqueço do dia em que sumiram encomendas de mais de 10 apartamentos no nosso prédio anterior e a administração do prédio fez o quê? Nada. Não mostrou nem solidariedade, nem preocupação. “Se você encomendou algo, é sua responsabilidade”. Um por um, ninguém por ninguém.

E também temos menos vizinhos. Se no antigo prédio, uma construção da década de 80, havia cerca de 60 apartamentos, no atual, são apenas 11. Três no térreo e dois em cada andar seguinte, até o sexto. Sim, não há elevador e, sim, há pessoas morando no sexto andar. Novaiorquinos são super acostumados com essa vida de escadas. Acho que eu não me acostumaria, visto que já perdia o fôlego – e a animação com qualquer que fosse a oferta imperdível – ao visitar apartamentos em andares mais altos. Voltando aos vizinhos, eu não tinha contato com quase ninguém no prédio anterior. Levou quase dois anos para conhecermos o rosto do rapaz que morava no apartamento colado ao nosso. Lembro que a gente sempre o escutava  chegando, à noite, e as portas eram tão próximas que eu sempre levava um susto, achando que alguém estava tentando entrar na nossa casa. Tinha também uma senhora muito simpática que morava no andar de baixo. Na primeira vez que eu a encontrei no elevador, ela foi super querida e atenciosa e perguntou em qual apartamento eu morava. Qual não foi a minha surpresa quando ela, minutos depois, subiu, bateu a minha porta e disse: “apareça para tomar um café qualquer hora”. Agradeci, encontrei-a mais algumas  vezes e acabei nunca indo tomar o tal café. Também tinha uma vizinha super escandalosa no andar de cima. Atire a primeira calcinha ou cueca quem nunca lidou com um vizinho assim… hahahahaha!

Agora, voltando ao prédio atual… demorou uns três meses para eu conhecer algum vizinho. Rolou na situação mais inusitada possível. Tinha ido para a academia e deixei o celular em casa. Ao chegar, descabelada e suada, tentei abrir a porta de meu apartamento e quem disse que a desgraçada abria? “O que eu vou fazer agora?” Não tinha como ligar para  meu marido, nem para um chaveiro. Apelei para o apartamento que fica abaixo do meu. A vizinha, uma americana muito simpática, com um bebê muito simpático e uma cachorra maior que eu, abriu a porta. A ideia era tentar subir pela escada de incêndio, já que era verão e a janela de meu quarto estava aberta. Tentativa em vão: a escada estava muito alta. Enquanto ela tentava me ajudar com o que fazer, não parava de falar. Contou que seu marido tinha saído para pegar o carro, depois que ele teve um mini ataque de pânico ao achar que o carro deles tinha sido roubado. Ele só tinha confundido a rua onde o carro estava estacionado. Homens… Quanto ao meu apartamento, bem, precisei subir ao terceiro andar, bater à porta de outra vizinha e descer pela escada de incêndio. Foi uma aventura. A escada é íngreme e apertada. E eu não tinha nem o meu celular para filmar aquele momento! Preciso destacar, é claro, a prontidão com que a senhorinha do 3B atendeu o meu pedido. Pensem bem: uma moça com roupa de academia, que você nunca viu na vida, aparece a sua porta às 11 da manhã querendo entrar em sua casa para pular pela janela. Não pude deixar de notar o breu do apartamento, que tinha cortinas pretas, fechadas, num dia lindo de sol.

Acabou que o casal com o bebê se mudou poucas semanas depois. Foram substituídos por um casal francês – fato que descobri  em um sábado à tarde, por acaso, quando ele limpava o pátio (o apartamento deles, no térreo, tem pátio privado), enquanto escutava algo que talvez pudesse ser uma rádio francesa… Claro que podem ser canadenses também. Já ouvimos o sotaque e concluímos que são estrangeiros, como nós. Ah, e a bebê deles já nasceu; escutamos seu choro à noite algumas vezes e hoje ouvimos seus gritinhos e grunhidos fofos. Em alguns domingos de verão, eles fizeram almoços no pátio que pareciam ser uma delicinha. Receberam vários amigos e nos deixavam um tanto nervosos por manterem a porta do prédio aberta para suas visitas. A falta do senso coletivo, nestas horas,  irrita bastante. Sabe como é, brasileiro é desconfiado, vive com porta trancada e já imagina que qualquer pessoa que estiver passando pela rua vai aproveitar a oportunidade para entrar no prédio e roubar algo.

Nosso prédio ainda conta com algumas personagens. Tem o “coroa” de cabelos grisalhos que fuma e todos os dias desce para saciar o seu vício – afinal, não é permitido fumar dentro do prédio. Ele é o homem dos pés descalços, pois sai de seu apartamento, desce as escadas e fica nos degraus externos do prédio, descalço. Descalço. Tal visão me provoca arrepios, pois fico imaginando quanta poeira e cabelos grudam na sola de seus pés – sem contar o contato com as fezes de pombos, que deixam suas marcas em vários cantos – inclusive nos degraus onde ele fica em pé, tragando seu cigarro, enquanto lê o jornal. Não tenho ideia se ele é casado, se tem filhos, se mora sozinho. Mas ele sempre cumprimenta com um bom dia ou um “hello”. Em nosso prédio, tem também a menina descolada que mora em um dos studios do térreo. Studios são como as quitinetes, ou, apartamentos de um cômodo só. Ela tem um cachorrinho muito fofo – fato que me intriga, afinal, fomos proibidos de ter animal de estimação- escuta música Hare Krishna e acende incensos. Encontro-a poucas vezes, quando está levando seu pet para fazer as necessidades. Já ia me esquecendo do galã. Eu o encontrei outro dia, quando estava saindo cedo para a academia e ele, certamente, para o trabalho. Vestindo terno, todo engomadinho, usava um perfume muito gostoso, abriu a porta para  mim e desejou “bom dia” com muito bom humor. Lembro que fiquei pensando em como o cara deveria ser feliz – afinal, não é tão comum encontrar os novaiorquinos tão bem humorados logo pela manhã, numa terça-feira. Tem também o vizinho do outro studio, que assiste à TV com volume bem alto. A janela da frente do studio dele fica para a rua e, embaixo, fica uma espécie de baú, onde estão os quatro recipientes para os inquilinos colocarem o lixo. Pode não parecer, mas onze apartamentos produzem bastante rejeito. Tanto que todo mundo costumava empilhar bastante lixo ali – chegando à altura da janela do pobre vizinho que, revoltado, deixou um bilhete em sua janela. O recado foi simples: não empilhe o seu lixo, eu moro aqui. Justo. Desde então, ninguém mais fez isso.

E tem a senhorinha, do título do post. A que eu deixei por último. A que abriu a porta para eu pular a janela e entrar em meu apartamento que não abria de jeito nenhum. Logo quando nos mudamos, ela acabou encontrando conosco na entrada do prédio.  Muito querida, pegou na minha mão, deu as boas-vindas e disse que amava morar aqui. Isso eu só lembrei bem depois, claro. Lembro que respirei aliviada quando a ouvi  falando isso e concluí: escolhemos bem o nosso novo lar. Afinal, se uma pessoa de idade estava feliz morando ali, significava que ela tinha paz e tranquilidade, coisa que eu também procuro num lar. Quatro meses depois, essa mesma senhorinha foi protagonista de um episódio que eu nunca mais vou esquecer. Era uma noite de verão, minha mãe e minha irmã estavam aqui nos visitando. Minha mãe lavava a louça – olhem a ironia, eu demorei meses para usar minha lava-louças – meu marido guardava o resto da pizza que tínhamos pedido para a janta e eu minha irmã olhávamos as fotos que tínhamos feito naquele dia. Era tarde, por volta de 11 horas da noite. De repente, minha irmã me cutuca e aponta para a porta. Aquela senhorinha havia entrado em minha casa. Nós não tínhamos o hábito de trancar a porta – fazíamos isso apenas antes de dormir. Muito assustada – e sem lembrar quem ela era exatamente – eu perguntei o que estava acontecendo. Ela respondeu que ouviu vozes. “Hum, estamos falando muito alto”, pensei. De fato, estávamos rindo e conversando num tom mais exaltado. Respondi rapidamente – e incomodada com tamanho atrevimento: “Bem, a senhora poderia ter batido na porta, não?”. A essa altura, eu estava tremendo. Estava assustada, afinal, uma pessoa estranha havia entrado em meu apartamento. Eu senti medo, confesso. Mas ela era indefesa. Ela perguntou onde estavam as outras pessoas. Meu marido ofereceu pizza. Seguimos uma sequência de diálogos rápidos – enquanto minha mãe, que não fala inglês, olhava tudo sorrindo, sem entender nada. Decidimos perguntar à senhorinha onde ela morava. Ela não sabia. Ela não lembrava. De repente, ela se deu conta que tinha saído do ar. Foi quando eu lembrei que ela era a senhorinha do 3B. Meu marido a acompanhou até seu apartamento, onde sua irmã a aguardava, muito incomodada e sem paciência – e sem parecer que estava preocupada com o fato de a senhorinha estar zanzando de pijama sozinha àquela hora da noite. Concluímos que a senhorinha tinha algum problema. Alzheimer, talvez. Ficamos mal. Ficamos com pena e, no fim, ficamos aliviados pelo fato de nossa porta estar destrancada e ela ter entrado em nossa casa. Sabe-se lá onde ela poderia ter ido e o que poderia ter acontecido com ela…

Um ano mais tarde, por volta do mesmo horário, eu e Thiago assistíamos a mais um episódio de Narcos. De repente, alguém bate a nossa porta. Fiquei assustada. Era muito tarde, não conhecemos ninguém no prédio que tenha intimidade para bater a nossa porta àquela hora. As batidas continuam. Eu fiquei com medo. Digo para o Thiago: não abra, espie quem é. Sim, era a senhorinha, novamente. Espiei também e a vi, em suas roupas de dormir, quando escuto que alguém de cima a chama: “você mora no 3B”. Confusa, ela não sabe nem se para chegar ao 3B é preciso descer ou subir. A voz a orienta e diz que ela tem que subir. E lá foi ela. Talvez ela tenha tentado entrar outra vez, porém, nossa porta agora estava trancada.

Parei para pensar em quantas coisas aconteceram no último ano: quantas descobertas, quantas mudanças, quantas pessoas entraram em minha vida, quantas saíram, quantos aborrecimentos eu tive, quantas alegrias, quantos planos, quantas derrotas, quantas conquistas. E me senti grata por cada uma dessas coisas…

Não, essa não é a minha casa, mas poderia ser… quantas vidas, quantas histórias, quantas alegrias e quantas tristezas escondem-se atrás dessas portas? 


1 comentário

  1. Melhor deixar a porta destrancada a partir de agora ?
    Quando morei em Montevideu, minha vida não seria a mesma sem minha vizinha ” senhorinha”
    Amei o texto ! Parabéns

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