Blog da Laura Peruchi – Tudo sobre Nova York
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A abertura das fronteiras: fake news e a era da (des)informação

No último fim de semana, a internet brasileira estava em chamas de alegria. O motivo? A notícia da reabertura das fronteiras dos Estados Unidos com o Brasil. Desde maio, qualquer pessoa que tenha passado pelo Brasil nos últimos 14 dias, não pode entrar nos Estados Unidos – a não ser que essa pessoa seja um portador de Green Card ou residente permanente, dentre outras exceções. Qualquer outra pessoa fora dessas exceções não consegue desembarcar nos EUA em um voo direto. A saída para muitos que precisam entrar nos EUA – seja por terem um visto de trabalho ou qualquer outra necessidade – é fazer quarentena em outro país (muitos optam pelo México, por exemplo). Não é, digamos, a saída mais prática, já que envolve custos extras com hospedagem e alimentação. Já se vão quase 4 meses de “fronteiras fechadas” e a notícia de uma possível reabertura deixou muita gente que ainda não desistiu da ideia de uma viagem pra cá bem animado.

Tudo começou na quarta, quando a revista Veja publicou a notícia de que os Estados Unidos flexibilizariam entrada de brasileiros a partir desta semana. A nota dizia que “o ato administrativo ainda não foi assinado pelo presidente Donald Trump, mas a informação já circula entre as embaixadas do país”. Confesso: até eu fiquei animada. Estou morrendo de saudades da minha irmã (que mora na Europa) e estamos contando as horas pra gente poder se ver novamente. Mas, sem confirmação, fica difícil comemorar. Rapidamente, a tal nota começou a se espalhar e eu até fui nos meus stories e falei que era necessário esperar a notícia oficial até para sabermos quem poderia entrar e quais seriam as circunstâncias de entrada. Afinal era só uma nota, a revista não havia dado nada como confirmado, mas sim como possibilidade.  Porém, foi no fim de semana que a coisa toda tomou uma proporção gigantesca. Um documento do Homeland Security falando do fim de restrições de chegada para voos de países como China, Brasil e UK caiu na rede e pronto: grandes portais de notícias no Brasil, blogs, perfis no Instagram e canais no Youtube começaram a divulgar o print do documento e afirmando com todas as letras que as restrições para entrada de brasileiros acabaria essa semana. Foi comoção geral.

Até então, eu não tinha noção da proporção da coisa, até ver os stories da Nyorquina, no sábado, explicando melhor. Tentei entender, peguei o documento, traduzi, pesquisei em sites americanos. O tal fim de restrições nada tinha a ver com abertura de fronteiras e sim com mudança de protocolo para voos vindos de tais países. Antes, eles só podiam pousar em 15 aeroportos determinados pelo governo. O que mudaria seria a inexistência de tal exigência. Fui para os meus stories também e expliquei. E, por muitas vezes durante aquele dia, cheguei a me perguntar se eu estava louca. Absolutamente todo mundo dando como certa a reabertura e poucas pessoas falando que a informação não procedia. Fui ao site da Casa Branca, li a ordem executiva do Trump e lá estava escrito que tal ordem só poderia ser revertida por ele. Além disso, sites como Washington Post e Forbes explicavam a mudança de protocolo também. Mais tarde, a Embaixada Americana no Brasil acabou com a confusão ao publicar uma esclarecimento dizendo que “o comunicado do CDC e a publicação do DHS não alteram quem é permitido entrar nos Estados Unidos sob proclamação presidencial”. Parecia complicado num primeiro momento, afinal, era um texto em inglês, não muito óbvio de entender. Só que, honestamente, depois de ler com calma, traduzir, checar as coisas, não existia margem pra outra interpretação. Fiquei me perguntando: se restavam dúvidas, não seria melhor ir até a fonte? Será que se os EUA tivessem aberto a fronteira para tantos países não estaria em todos os portais mundiais? Alguém pensou em checar a ordem executiva do presidente? Ligar para a embaixada?

Sim, seres humanos estão suscetíveis a erros – porém, uma notícia desse peso teria uma repercussão enorme. Quando maior seu alcance, maior sua responsabilidade. Teve gente dizendo para o público comprar passagem. Teve agência vendendo passagem. Teve gente espalhando print na internet sem sequer ler. Dando falsas esperanças. Infelizmente, isso é muito mais comum do que pensamos. É o tal furo de reportagem, conhecido no meio jornalístico e hoje também existente no meio das redes sociais. É questão de honra, ego e orgulho – todo mundo quer ser o primeiro a dar uma notícia bombástica como essa. Eu adoro quando descubro alguma coisa que eu sei que o meu público vai gostar de saber – não sou hipócrita. O interesse “vende”. Mas as “notícias bombásticas” precisam ser ponderadas, pensadas e apuradas antes de serem jogadas na rede, onde vão se espalhar na velocidade da luz. Se no passado somente os meios de comunicação tradicionais tinham esse poder nas mãos, hoje ele está nas mãos de todos que têm um telefone com acesso à internet. Em um ou dois cliques você compartilha algo com sua rede de contatos – que pode envolver 20 amigos – ou com sua audiência, que pode envolver centenas de milhares de pessoas. E, nesse caso específico, quando  a gente vê grandes portais, conhecidos e de renome, replicando a notícia, como não acreditar? Eu mencionei acima: eu duvidei de mim mesma no sábado, já que todo mundo ao meu redor falava o contrário, enquanto eu estava lá dizendo: olha, acho que não é bem assim. Tive medo, confesso, e falei: se eu estiver errada, pedirei desculpas. Não foi o caso. E isso não é um jogo onde alguém ganha ou perde, mas todo esse episódio fez eu pensar em muitas coisas. Principalmente, em como as ferramentas de redes sociais são maravilhosas e perigosas.

Eu lembrei de um episódio parecido que aconteceu há alguns meses. Quem me acompanha pelo Instagram, sabe que eu cobri praticamente 90% das coletivas de imprensa do governador de NY, Andrew Cuomo, nos meus stories. Todos os dias, eu assistia à coletiva e resumia os fatos. Inclusive, teve gente que conheceu o meu trabalho por conta dessa cobertura. No início de maio, quando a curva começou a cair,  o governo quis saber de onde vinham os NOVOS casos. O resultado da pesquisa de 3 dias com 113 hospitais e 1000 pacientes mostrou que a maioria dos NOVOS casos eram de gente em casa.⁣ Infelizmente, no Brasil, pegaram um trecho desse vídeo, legendaram, e publicaram sem contexto. Rapidamente, o vídeo se espalhou e começou a ser usado para dizer que a quarentena aqui não havia funcionado e mostrando as estatísticas como se elas se referissem a todos os casos. Gente criando até fala: “governador de NY admite que quarentena não está funcionando.” Cortaram o final e nem sequer consideraram outros fatores importantes da tal enquete, mas que nem vem mais ao caso agora. Lembro que fiz um post no meu Instagram esclarecendo o fato, mas, nessas horas – assim como aconteceu no sábado, ao falar das fronteiras, eu me senti secando gelo. As coisas tomam uma proporção tão grande que parece que qualquer esforço que você faz para mostrar o outro lado é em vão. É como gritar dentro de uma sala à prova de som. É como sussurrar no meio de um show de rock. Ninguém escuta. E acho que existe uma tendência grande que leva as pessoas a acreditarem naquilo que convêm a elas. Quem tem viagem marcada, certamente ficou feliz com a possível reabertura. Quem não acreditava em quarentena, ou até mesmo no Coronavírus, ficou feliz com o vídeo do Cuomo.

Para mim, tem alguns equívocos grandes e preocupantes nessas histórias todas. Primeiro, o fato de perfis grandes, com centenas de milhares de seguidores, replicarem essas notícias. Segundo, o fato de que, mesmo desmentidas, a maioria dos tais mensageiros não se retrata. Não pedem desculpas. Não assumem os erros e ainda vêm com mais teorias pra criar falsas expectativas. E, terceiro, o fato de uma grande parcela da população se acomodar numa posição passiva ao receber notícias. A gente recebe, aceita, replica. Não questiona. E ainda endeusa muitas dessas pessoas que estão na internet criando intriga e fazendo sensacionalismo. E replica. E aceita. E assim o ciclo se repete. Por isso, é muito importante a gente refletir sobre nosso papel como audiência, como receptores, como consumidores da informação. A gente está criando senso crítico próprio ou apenas seguindo a linha de pensamento de algumas pessoas? A gente está mesmo refletindo sobre nossos valores, abrindo a cabeça para enxergar além, ou aceitando o que chega pra nós mastigado e recebendo aquilo como a única verdade? A gente argumenta buscando conhecimento e informação, ou se contentando com aquilo que o “fulano” falou ou com a notícia recebida pelo WhatsApp? Vamos respirar mais fundo antes de apertar o compartilhar. Vamos prestar atenção naquilo para o qual damos audiência, like, follow, share. Não subestime o poder que você tem nas mãos. Precisamos parar de soar como discos arranhados. 

E já fica registrado também:  não sou a dona da verdade, nem tenho pretensão de ser. Busco agir de acordo com os meus valores, não gosto de acreditar na primeira coisa que leio, questiono, milito, problematizo. Ninguém precisa acreditar fielmente em mim. Mas talvez seja importante saber dos meus princípios para saber quem você está acompanhando. Por isso, falando especificamente nessa questão de turismo e coronavírus, eu não dou resposta quando me perguntam quando eu acho que as fronteiras vão abrir. Eu também não falo se eu acho que em dezembro tudo estará ok. Porque, nesse caso, o que eu acho ou deixo de achar, não significa nada. Absolutamente nada. Odeio especulação baseada em achismo. Odeio teoria criada a partir de achismo. Ainda mais vindas de pessoas que não têm respaldo algum. Eu tenho plena consciência da minha responsabilidade criando conteúdo, das expectativas que são criadas, da ansiedade que o mundo vive – e do quanto muitas pessoas confiam em mim. E não subestimo isso. Eu não espalho boatos. Eu odeio “ouvi dizer” ou “fiquei sabendo”.  Eu lido com perguntas, questões e histórias de muita gente –  desde perguntas sobre o clima até questões de imigração. Não dá pra agradar a todos. Tento ao máximo todos os dias me livrar desse desejo utópico de fazer isso. E, no que depender de mim, quero incentivar as pessoas a serem mais ativas do que passivas – nem que seja no planejamento de uma viagem.

Sugestões de documentários

A seguir, duas recomendações de documentários que trazem reflexões necessárias sobre essa era da internet, rede

After Truth: Disinformation and the Cost of Fake News| HBO – esse documentário investiga a ameaça contínua causada pelo fenômeno das “fake news” nos EUA, com foco nas consequências na vida real que a desinformação, teorias de conspiração e notícias falsas têm sobre o cidadão médio, tanto em um ciclo eleitoral quanto nos próximos anos. After Truth apresenta acesso exclusivo às vítimas e perpetradores de notícias falsas, bem como uma variedade de especialistas e jornalistas que contextualizam seu impacto e reforçam a importância do jornalismo de qualidade e examina vários incidentes que foram impactados por “fake news”.

 

The Social Dilemma | O Dilema das Redes | Netflix – o documentário explora o impacto desproporcional que um número relativamente pequeno de engenheiros do Vale do Silício tem sobre a maneira como pensamos, agimos e vivemos nossas vidas. Basicamente, mostram como os algoritmos de redes sociais controlam aquilo que vemos e, de certa maneira, trazem um certo vício. Para mim, a parte mais interessante foi a que aborda o lance da desinformação e das fake news.


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