Blog da Laura Peruchi – Tudo sobre Nova York
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Struggling in New York City – ou a vida real em outro idioma

A gente encara muitos desafios na vida. Muitos. Em maiores ou menores escalas. Quando somos pequenos, o desafio é testar os limites de nossos pais. Passados alguns anos, queremos ganhar mais horas acordados. Mais horas brincando na rua. Quando chega o tempo do colégio, começamos a praticar a arte de tolerar o que não gostamos: alguns vão curtir as exatas e se dar mal em português. Outros, como eu, vão logo mostrar que são de humanas e desenvolver uma relação de ódio com os números. Não demora muito, queremos mais liberdade para sair à noite. Também queremos conquistar a confiança de nossos pais ou ganhar mais dinheiro para a balada. Chega a faculdade, o mercado de trabalho, o casamento, a maternidade – não necessariamente nessa ordem e não necessariamente para todos – e os desafios são maiores: contas para pagar, projetos no trabalho para dar conta, relacionamentos para administrar… É, quem diria que você iria sentir saudades da época em que tudo que  mais queria era a liberdade? Com a liberdade, vêm as responsabilidades. Ser adulto, definitivamente, não é tão fácil.

Quando você mora fora, seus desafios ainda podem ser os mesmos, mas você acaba encarando, como bônus, outros desafios que, talvez, nunca tivesse pensado a respeito. Morar fora, como eu já mencionei em outras oportunidades, é zerar a vida. Não importa em quais circunstâncias você chega aqui: seja com emprego, seja para estudar, seja com hospedagem temporária garantida. Todo mundo precisa enfrentar as mazelas de uma nova vida. Uma vida num lugar que é diferente daquele em que você vivia. A burocracia é outra, o jeito de alugar um imóvel é outro, o jeito de reclamar de certas coisas é outro – e até mesmo o seu status aqui e o que você pode e o que você não pode fazer estão atrelados a uma folha de papel anexada ao seu passaporte: o seu visto. Além de tudo isso, há um detalhe muito importante: esses mesmos desafios, novos e antigos, são encarados em outra língua. Não há gambiarra que faça você passar imune a isso. Você passa anos da sua vida resolvendo todas as pendengas – no meu caso, foram 27 – em português. E, de repente, vai se ver num lugar onde a mais simples tarefa – como decidir se a água é com ou sem gás, se você empurra ou puxa a porta para entrar ou descobrir o tamanho da calça jeans – pode se tornar árdua caso você não conheça os termos corretos.

Vejam bem: eu sempre gostei de inglês. Como mencionei no início do post, sou de humanas e as matérias que faziam meu coração vibrar eram português e inglês (sabendo que eu sou jornalista, será que resta alguma dúvida a respeito disso?). Eu lembro alguns sonhos da Laura novinha: o de ser modelo e atriz, como eu respondia nos antigos questionários (esse talvez fique para a próxima encarnação), o de pintar os cabelos de vermelho (foram longos anos aplicando o Cereja de Koleston), o de assistir a um show do Hanson (sonho que realizei há poucos dias e contei aqui no blog)… Eu tinha vários sonhos loucos, mas tinha um desejo muito grande: falar inglês. Eu queria falar inglês mesmo sem saber se um dia eu viria a precisar do inglês. Eu traduzia músicas, devorava os livros e mais tarde entrei em cursinho (contei como aprendi aqui). Mas nada – nem as minhas viagens internacionais prévias – me preparou para o que foi a mudança para Nova York. Nada preparou meu ouvido para as dezenas de sotaques falando a língua que eu tanto sonhei em falar.

No começo, tudo é difícil. Seu ouvido não está acostumado a ouvir, seu cérebro ainda não se acostumou a processar o que você está ouvindo. Não me lembro  de ter muito medo de falar – aliás, medo é algo que nos impede de fazer muita coisa e, quando se trata de uma nova língua, o medo nos limita demais. Porém, por mais que eu me esforçasse, o ouvido ainda não estava bem afiado. Ainda hoje acontece de eu pedir para a pessoa repetir caso eu  não tenha entendido. Mas, depois da segunda ou terceira tentativa, eu faço uma expressão bem plena e finjo que entendi. No começo, atender ao interfone era uma das coisas que eu mais odiava fazer. Era sempre a mesma coisa: o interfone tocava, eu atendia e escutava aquela voz falando rápido. Para piorar, tinha o ruído do aparelho. Eu falava “sorry” umas quatro vezes e não entendia o que o cara falava. Um dia, desci três andares de escada para falar com o entregador pessoalmente. Tarde demais, ele já tinha ido embora, obviamente. Cansei. Por uns bons meses, o interfone tocava, eu escutava e fingia demência. “É como se eu não estivesse em casa”, pensava. Nada de errado. Hoje, está tudo bem. Eu e os entregadores já fizemos as pazes. Até dei dicas para um outro dia, que se atrasou com a entrega de meu almoço porque tinham roubado sua bicicleta. Anotei dois sites num papelzinho para ele procurar por bikes usadas na internet. Apesar de tudo, ele não demonstrou muita tristeza. Talvez seja por causa desse ritmo de Nova York, que nos dá um tapa todos os dias e nos faz levantar na mesma velocidade…

Também tem aquele medo de falar em público. Não foram muitas as oportunidades, mas é sempre a mesma história. O coração bate mais forte, você se sente o rosto ficar quente, as mãos não param. Da primeira apresentação de trabalho no curso de inglês até aquela reunião importante, a verdade é que falar em público não é algo que deixe todos confortáveis… E se for para falar em público num idioma que não é sua primeira língua, aí o negócio complica. Porém, não é possível negar a sensação de satisfação ao perceber que você deu conta da tarefa. Talvez não do jeito que você imaginava, mas vencer esse pequeno desafio do dia a dia é praticamente como vencer a maratona de San Silvestre. Óbvio que ainda rola aquela velha sensação de cair a ficha, mentalmente, quando você fala algo e, rapidamente, percebe que falou errado. Gente, como isso me dá raiva e faz eu me sentir uma idiota… Mas prefiro focar no lado bom: se o interlocutor entendeu a mensagem, é isso que importa. Mas não há como negar que eu gostaria muito que existisse o botão de rebobinar para eu apertar caso isso aconteça. É incrível a sensação de vulnerabilidade. Quem diria que um dia um dos seus desafios seria saber diferenciar “push” de “pull”? Até hoje, eu leio “push” pensando mentalmente: push empurre, push empurre. E penso umas duas vezes para diferenciar  o número “twenty” de “twelve”.

E tem as brigas né? Ahh, as velhas discussões. O ser humano é incrível. Todos nós temos um cadinho de orgulho dentro de nós mesmos e quem não odeia ficar por baixo numa discussão quando sabe que está com a razão? Pois é, meus amigos. Se você é do time que “nunca poderia ser advogado, porque o advogado inimigo ia falar uma coisa e você só iria pensar numa resposta boa dez horas depois, ao entrar no banho”, bem-vindo ao time. Já não me acho a melhor argumentadora em português – agora pegue uma situação de discussão, nervos acalorados, ansiedade. Tudo em outro idioma. Quantas discussões eu já deixei de lado porque me faltaram argumentos? Quantas vezes eu pensei mentalmente em como fazer a cidadã honesta e revoltada no metrô e reclamar dos sem-noção, ensaiei mil jeitos na minha cabeça, mas acabei ficando quieta – não só por acreditar que não daria conta dos argumentos em inglês mas também por me dar conta de que não valia à pena? Não me arrependo das muitas brigas que não comprei, mas algumas fazem você voltar para casa com aquele gostinho amargo e aquela sensação de “ah, se fosse em português…”. A única coisa que eu não deixo passar são os tarados. Mexeu comigo, vai ter resposta – pelo menos se eu estiver em um lugar público. É triste ser mulher em muitas situações, não importa o lugar no mundo.

Ah, e sabe quando o bebê está aprendendo as palavras? Quando ele aprende que aquele líquido refrescante é água, que aquela fruta é banana, que aquele prato é arroz? É mais ou menos assim quando você mora fora. É claro que tem palavras que você até já conhece: seja cookies, eggs, rice ou tomatoes. Mas você vai acabar tendo que descobrir um vocabulário totalmente novo na hora de fazer as compras do mês. Vai se deparar googlando as palavras mais simples como abobrinha, palmito e cebolinha. Vai ter que descobrir como se fala lençol e como se compra edredom. Vai ter que decodificar o sistema de medidas e descobrir que as calças tem tamanho para a cintura e para a perna, que o seu número de calçado pode ser 7,5. Vai se sentir ridícula ao tentar explicar na farmácia que precisa de um remédio para aftas – mas tudo que vai conseguir é um remédio para herpes labial. Vai ter que estudar cada palavra e sintoma para conseguir ir ao médico e se comunicar com ele. Vai ter que aprender todas as nomenclaturas de um apartamento quando for procurar o seu. E também vai ter que fazer seu ouvido virar ouvido de ninja para entender aqueles avisos sonoros do metrô. Ainda vai ter que converter tudo para inches, milhas e Farenheit – porque até hoje não deu para deixar a escala Celsius de lado. Cada descoberta é uma pequena vitória. Quem diria que você ficaria tão feliz ao conseguir ir ao correio e postar aquela encomenda sozinha? Ou ao ligar para o telemarketing para reclamar de um serviço? E o ápice de todos, claro: aquela sensação de dever cumprido ao ajudar alguém na rua ou no metrô com as direções. É como tirar 10 naquela prova difícil.

E não esqueça que o saldo disso tudo vão ser as novas palavras no seu vocabulário. Não, quem mistura inglês com português – ao falar, pelo menos, porque para escrever temos um tempinho para processar a informação – não é convencido, nem metido, nem está querendo se aparecer. Aos poucos, você começa a pedir delivery, a fazer o laundry, a sair para um date. Algumas dessas palavras são a força do hábito. Outras, acabam fazendo muito mais sentido. Você acaba tendo aquelas expressões preferidas. Aquelas cuja tradução não parece fazer muito sentido. Como “freaking out” – não importa se a tradução remete a pirar. Em muitas situações, eu me vi exatamente assim: freaking out com a vida aqui, que exige que você vença uma batalha todos os dias. E querem saber qual a palavra que define, para mim, a verdadeira vida em Nova York? Struggle. Em português: lutar, tentar duramente, fazer um grande esforço, debater-se, contorcer-se, procurar libertar-se. A palavra ou o verbo define o que é morar no exterior. É lidar com todos os pequenos desafios diários de viver uma vida num outro idioma – que nunca vai ser o seu, por mais que você passe a vida inteira aqui – numa outra cultura, num lugar onde as coisas funcionam de um jeito diferente, onde cada tombo pode ser dolorido, onde todo mundo luta pelo seu lugar ao sol. Um lugar onde muitos struglle para chegar onde sonham, para conquistar seus desejos, para buscar sua felicidade. Um lugar onde o seu sotaque sempre vai denunciar quem você é – algo que nem sempre pode ser ruim, mas nem sempre vai  deixá-lo na posição de vantagem. Um lugar onde nem sempre todos os sorrisos são simpáticos, mas, ao mesmo tempo, também é completo por conta das misturas mais exóticas. Por fim, é um lugar onde uma única palavra não tem tradução nem nunca vai sumir do seu imaginário, da sua vida e do seu vocabulário: saudade.


2 Comentários

  1. Nossa.. deu um aperto aqui!
    Muito bonito seu texto. Realmente para a gente que sonha em morar fora, nunca consideramos as batalhas do dia a dia.
    Obrigada pela franqueza e sinceridade e por mostrar que a vida não é fácil, mesmo se você mora no lugar dos sonhos.
    Boa sorte e que tudo se encaixe!
    Adoro seu blog 🙂

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